Travessia do sertão

Acabo de completar a leitura de Grande Sertão: Veredas e, no fundo de tudo que estou sentindo agora – e que nem sei se é coisa que chega a tomar corpo de sentido ou sentimento –, resta-me essa insólita e vagueante perturbação. Parece, apenas “parece”, que conheci um lugar. Não posso descrevê-lo, porque nem sei se o que vi, vi. Se vivi ou sobrevi. Como quem passa ligeiro e pega no ar um fragmento de coisa viva e rapidamente fecha a mão sem ter visto se pegou mesmo. Coisas que escapam aos dedos dos vocábulos, qual vagalumezinho acende-some, que é luz e nada ao mesmo tempo: se esconde sem deixar o lugar. Pois bem. Começar este livro foi mergulhar num abismo de túnel sem chão nem princípio. Foi a travessia. Então, um dia, talvez no afã inconsciente de rasgar viagem comprida por querer cumprir, no real, a viagem iniciada, fomos que arrancamos de carro até o norte de Minas Gerais. Queríamos o Sertão. Eu queria e não queria. Soubesse? “O que antes não sabia, hoje não entendo”, me dizia Riobaldo. Rumamos. Mais estrada se seguia e mais atrás deixávamos nossas vidas em busca da alma viva do Sertão. O Sertão tem alma? Tem vida? O nó desgosto de mais ir e ir sem conhecer destino prévio. Íamos ficando cada vez mais distantes de casa. Maior também ficava nosso alívio, por um inverso e esquemoso sistema que calculava esperanças de chegar. Aonde? Conforme, então, seguíamos por não poder voltar; mas num esforço desventuroso de tampouco querer prosseguir. Belo Horizonte, pernoitamos em mal humores e solidões. Desistimos? Continuamos. Quanto mais esticávamos lonjura, mais longas e desoladas ficavam as horas. O tempo ía assim se tresmudando mudo em extensas rodovias. Veredas imensas desse País sem fundo. Estradas ruins de crateras e buracos. Sete Lagoas passamos. Uma chuva miúda e contínua, o céu tingido de cinza situava os limites de nosso poder de respirar. De repente, como que, sem saber disso, entrávamos numa guerra surda e sem juízo. Debatíamo-nos nos internos do corpo num silêncio pesado, a banhar de ocre as paisagens. E o que figurava ser o nosso esboço de resistência e força – um sorrir murcho, bobo e seco – nascia ali mesmo, da luta. Contra quem? Então sentimos o aproximar de outra sorte de lugar: era o cerrado, principiando-se amarelo. Muitos caminhões de carvão. Nada nos salvava. Qualquer sede que se tivesse, vontade de café ou fomezinha de bala, já servia de assunto desviatório de atenção e garantia alguma saciedade de nexo. Qualquer coisa nos salvava. Aonde quer que pousasse a vista naquelas paragens, caçava a sombra silhueta de dois sertanejos montados em seus cavalos, indo ou vindo. Jagunços em situação: Riobaldo e Diadorim. Eu queria, acreditava. Minha alegria aumentava à expectativa e firme crença num repentino encontro que se daria. Eu buscava era um algo que se encorpava mais e mais aos quilômetros passados e que, a qualquer momento, se revelaria perfeitamente tocável e substancial. O qual ainda não vinha. Viria? Passamos Cordisburgo, ali onde nasceu Guimarães Rosa e onde hoje foi feito um museu em sua homenagem, constituindo parte do roteiro “Guimarães Rosa” – já era o começo do Sertão. Como que se tudo ali tivesse pulado de dentro do livro, meu imaginar vagueava entre realidades igualmente críveis e fantásticas dando corda ao desejo de alcançar o coração do enredo. Como eu pudesse me deparar ante a presença viva de Riobaldo e Diadorim. Nosso objetivo, nesse dia, era chegar a Montes Claros, que já anoitecia, para o refôlego de mais um dia em viagem de duas horas até Januária – nosso destino final por projeto ou desvario. O que queríamos? Eu já estava avançada na leitura, lá pelas 400 páginas corridas. Corinto, Lassance e, mais um pouco – e mais fortalecidas no propósito – chegamos em Montes Claros. Cidade feia e sem grande valia para poesia. Sem saber onde ficar, acabamos nos hospedando justo onde: na Pousada do Sesc! Tanto viajamos para dormir no Sesc. Tudo se desmoronava novamente. A maré de nossas forças recuou deixando uma ressaca de estrada e a gastura nos acabou em desilusão. Sentimento de perder sem nem mesmo ter achado. Que era que pretendíamos naquele lugar sem fundo? Ali era o nada. Não era cidade de verdade, nem coisa alguma cabível em alma de forma e préstimo. Ficássemos em São Paulo com seu tamanho de mundo e o cinema. Mas ali? era só desânimo... Estávamos para o súbito deserto. Ao redor de nós, o Sertão, e dentro de nós. “O Sertão é quando menos se espera”. Sem cheiro de origens – ou talvez aquilo mesmo fosse a origem – sem entradas, nem saídas. Era como se a nós se camuflassem os portões de acesso ao interno de um lugar. Estávamos no não-lugar. A música ruim do rádio, a cultura malmente reproduzida das capitais, suplantada no Cerrado na forma daquela rabeira de comércio, insuficiente pra fazer o lugar entornar um caldo grosso de cidade grande. Era o nem isso nem aquilo onde estávamos. Foi então que viemos a desconfiar de que aquilo já era o Sertão, em seca e Estado. “O Sertão é sem lugar”, avisava Riobaldo. Nos conformamos vencidas. Daí adiante, foram só as desfeitas e as despedidas. Não chegamos e já partíamos. Mais não subimos, à bela e formosa Januária com suas praias do São Francisco. Voltamos, porque nosso destino era o rumar movimento por si, assim feito os astros cruzando o firmamento do céu em seu roteiro diário: ao que, em parar, caíamos no buraco da existência. Nosso chão era o trilhado e nosso estar era correndo. Estrada, estrada, estrada. Será que o que não vivemos e não vimos foi em ausência tocável o fantasma do amor não consumido entre Riobaldo e Diadorim? Esse amor, que só à morte se abriu flor e não se fez, teria sido de nossa desventura o surdo mote? Miséria deles, miséria nossa. Sertão de muitos espelhos. Medos que tínhamos e forças com que os enfrentávamos e que daquela terra mesma se produziam e afloravam. Medo da loucura. Queríamos e não queríamos mais dirigir. Quanto mais andávamos por sobre aquelas paragens desalmadas em abandono, mais adentrávamos “no vazio do vago”. Tudo era um sim e um não justapostos e encruzilhadas. Podíamos tudo tanto quanto nada. O absurdo daquela viagem sem fim de descanso nem de finalidade. A gasolina sendo tanto gasta para o sem razão alguma. Travessia. Viemos descendo por Pirapora, aonde o Rio do Chico corria afoito e breve como nós. Praias não havia. Nem um naco de silêncio, sem pagode ou axé music. A desalma! Não encontrei Diadorim. Foi como ir de surpresa à casa do amigo e, lá, aos pés da porta, dar com a casa vazia, o dono se encontrando noutro lugar. Voltamos de Pirapora, Três Marias e todo o resto, que na vinda nos levou três dias, fizemos de uma vez. Ficar para ver o sol ali nascer novamente constituía já uma tal exaustão psíquica que preferimos e escolhemos a exaustão do corpo ao volante num dia inteiro de viagem. E afinal, também o corpo se recusava a descansar e refazer-se longe do cheiro de casa. Sem dizer adeus, nem olhar pelo retrovisor, fugimos deixando assim aquele Sertão que nos engoliu antes puséssemos nele os olhos. Ainda sem ser visto, do mesmo jeito que nos devorou, quase enlouqueceu, quase nos matou, para fora de si nos cuspiu. Nossa visão era à frente, para o ir-se embora, como que afugentadas de onça braba em seu dever de ninho. O Sertão é um ninho? E foi somente o pôr o corpo em casa – olhos, pé, nariz e mão – que, no cerrar da porta, deixamos definitivo o cerrado e o Sertão. Mal agora terminei o livro. Refeita do vão de uma tristeza sem beira – escrevo-lhe – dando medidas ao que é mensurável e possível. O que não é, não digo porque não é para ser, assim como o Sertão existe sem se ver – esses mundos que se auto-constroem pelos abismos e veredas do Silêncio. Coisas assim, não identificáveis. O sem-lugar. Eis que, de novo, ele vem: o Sertão, enfunando o coração da gente. “O Sertão é assim: o Senhor empurra ele pra trás e ele volta a rodear o Senhor pelos lados”. Ah, Riobaldo, mano velho! Segredo difícil o seu, de carregar na barriga o umbigo da poesia...Travessia. De tudo isso que não me cabe em natureza de pensamento, nessas lamas sertanejas da mente, só uma música ecoa fraca e tremeluzente feito aquele vagalumezinho. Como álbum de uma faixa só, fica ela se repetindo e se dizendo em nó de desentendimento na minha cabeça. A qual é essa:

Pau rolou, caiu

Pau rolou, caiu
Foi na mata, ninguém viu
Pau rolou, rolou...