Ilustradora de silêncios

Juliana Russo é ilustradora. Inúmeras vezes contribuiu com seu trabalho em intervenções urbanas, como parceira feliz e informal dos vários coletivos e artistas autônomos que habitam esta e outras cidades da Terra. Juliana é ilustradora. Mas que merda isso quer dizer? Não quer dizer e não diz. Juliana não diz quem é. Não diz, porém aponta com o dedo ou o mouse. Porque o que ela é, sente e faz é uma mistura confusa entre céus e infernos que se projetam instantaneamente em forma de imagem. É como se os rabiscos e as cores brotassem de seu corpo e ganhassem vida própria. No entanto, eles também já não são mais ela. São o que dela já se foi. Juliana é silêncio de si mesma. E suas ilustrações reproduzem os silêncios das gentes e das ruas. Ao conhecer seu trabalho, senti esse imenso silêncio me ocupar. Difícil falar sobre ele. Clarice Lispector dizia: “O silêncio é a profunda noite secreta do mundo. E não se pode falar do silêncio como se fala da neve: sentiu o silêncio dessas noites? Quem ouviu não diz. Há uma maçonaria do silêncio que consiste em não falar dele e de adorá-lo sem palavras”. Juliana adora esse silêncio mundano, sujo e cruel que fecunda seu trabalho de lirismo, algodão-doce e tapa na cara. E é adorável e terrível sentir esse silêncio dela penetrar os olhos e estapear a alma com sua urgência de real. Sua realidade urgente. Mas que tarefa ingrata a minha de tentar somar o silêncio da rua, o dela e o meu na esperança de que o resultado se possa traduzir em palavras! Juliana viajou pela Europa, passando seu tempo em casas ocupadas por jovens em Paris e na Espanha. Experiência indescritível que alimenta nosso voyeurismo secreto, nosso desejo recôndito e maldito de se jogar na vida, se atirar a ela feito cigano, de simplesmente renunciar ao caminho dos anjos para deliberadamente abraçar a imundice corpórea e carnal das coisas terrenas. Escolher a clandestinidade do anonimato e do paralelismo. Mais uma vez, Clarice daria seu relato sobre esse desejo: “Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu”. Essa parece ter sido uma viagem que fez a ilustradora conhecer o centro de tudo o que era e não era ela. E esse “outro dos outros” veio a ser a Juliana que voltou da Europa. De qualquer modo, ela também não fala sobre isso. “Não sinto vontade de escrever sobre essa viagem. Foi em 2001, agora é 2005, ou seja, já faz tempo, passou...”, justifica. Ao invés disso, mostra flyers de festas e eventos de arte que costumavam fazer na casa onde ela ficou e fotos de intervenções que faziam por lá. De volta ao hoje, 1º de outubro, na sua casa recém comprada, em Pinheiros, toda feita de cadeiras, aparadores e lustres encontrados no lixo, no chão da rua, repaginados, concertados e reutilizados, ela vai abrindo livros e mais livros sobre arte urbana. Em muitos momentos, nos detém por uns segundos em alguma imagem, enquanto vai abrindo outras, rubricando estas exibições com seu elogio máximo: “Esta é de chorar”. Pois é, tem mais este detalhe: os olhos chorões da Juliana. Eles também choram em silêncio. Na verdade, seus olhos não parecem normais. Em primeiro lugar, não parecem ser convexos, como os da maioria das pessoas, mas côncavos: recebem a pulsação e a poesia da cotidianidade humana com a delicadeza e eficiência de uma cuia, uma concha que extrai de um rio apenas a água suficiente para matar – ou aumentar – a sede de quem vê seus trabalhos. E eram também olhos invertidos, que enxergavam as coisas pelo seu contrário, viam suavidade na dureza concreta da cidade, beleza na sua feiúra sócio-econômica, clareza na penumbra dos seus cantos, becos e buracos. Olhos que dão nomes aos personagens anônimos do cenário público. Olhos-prisma que refratam o pesado cinza-chumbo da paisagem metropolitana e o decompõem em miríades de cores e animações melancólicas. Os olhos da Juliana choram linhas, traços, figuras e personagens silenciosos. Choram o silêncio de mil vazios públicos e menores abandonados. Além de tudo isso, são olhos que se fazem de ouvidos e escutam espaços, edifícios e almas desconhecidas. Nosso encontro foi perturbadora e intensamente visual. Ela mostrou trabalhos seus e de todos os artistas que amava e que a fazem chorar. É só isso que ela espera causar com seu trabalho: tocar outras pessoas e fazê-las chorar. Ao chegar em casa, chorei. Chorei convulsivamente, como se uma dor que não era minha me tivesse tomado inteiramente a ponto de eu já não me saber mais, de não me caber no peito e de só me restar...Silêncio. E se chorar silêncio já é difícil, descrever aqui esse choro-calado será possível? Tarefa ingrata a minha. Talvez um dia eu consiga ser como a Juliana, capaz de compartilhar esses silêncios em imagens indizíveis. Mas enquanto isso não é possível, eu observo seus desenhos e isto que transcrevo pra você não é silêncio. É grito.



Revertebral


Sonhei que me desossava por inteira.
Calmamente,
com minhas próprias mãos
repuxei todos os meus ossos
pela boca
Vértebras, pernas e bacia
Braços e costelas
Extraí de meu corpo
Carpo e metacarpo
E subi num ônibus
Carregando meu esqueleto.
Sem saber o que fazer
Jogá-lo fora não podia
Só me restou comer
E eu o comia.

Ou melhor, chupava-o
Osso por osso
todo o tutano
E cada pele de ano
que em mim se somava

Em mim - Homem do Agora

Contemporâneo

Que contém todos os tempos

No simultâneo

Homo-Átomo

Homo-Sapiens

Homem-Sapo

Super-urânio

Subi no ônibus
Carregando o meu crânio.
E com ele todos os milenares segredos
Informações da estrutura.

Suguei de mim
Meu próprio futuro
do passado
Estarei lá atrás.
Meus ossos existem antes de mim:
Nasci para desencarná-los.

Agora sou um corpo desossado
e sigo andando

Mim caminho
Mim perdura

Pergunto-me:

Como é possível bailar assim,
sem ossatura?