ABAPORU-ARAWETE

"De quê?" - me pergunto.
De quê se compõe essa minha estranha matéria humana? Com que termostato me regulo, me meço, me modulo em minha dança incerta por esses trajetos infinitos?
Que infalível bússola absurda é esse meu antiquíssimo coração!
Não sei porque ainda me surpreendo com a evidência de minha frágil condição, toda vez que os dedos de minha mão me contam quantos mortos já enterrei.
Por que, passados tantos séculos da História, ainda me rasga a alma ver o meu figurino rasgado?

E não poder dilacerar, esgarçar mais o tempo, para poder caber mais tempo dentro deste meu andamento. Porque sou lento demais.
Sob este céu pleno de aviões, satélites e espaçonaves, que cobre este planeta interconectado, já plenamente desbravado, qual a minha indignação ao me descobrir completamente só e solto; à mercê do balanceio das caixas de áudio, das microfonias, dos fenômenos acústicos que me trazem um som amputado. Então nem mesmo todas as revoluções, todos os tratados, as declarações e tecnologias, nada podem fazer por mim diante de um cabo ruim num teatro lotado.
Já não era tempo de ter criado calos? Nem mesmo todas as Eras, corridas nestes milênios de evolução, não me ensinaram a responder mecanicamente? A agir como um ser autômato? Quem, hoje em dia, se constrange com uma imagem de guerra no jornal diário? Quem ainda se importa se os ovários da cadela estão fora de lugar?
Constato, dessa forma, que também eu estou fora de lugar e que meu espaço é miliminar.
Há algo de pré-histórico em minha organicidade. Meus passos são tortos, desequilibrados, ainda careço de estudar a fundo minha coordenação motora. Minha comunicação é escassa, bruta; eu mal saí da pré-fala. Sou desengonçado demais para conseguir nadar em raias tão estreitas, necessito do mar aberto.
Não sou objetivo, sou explícito, sou óbvio. Nada a esconder, nada a revelar. Não há coxias, não há filtros, depuradores ou traduções. Sou isso mesmo, exatamente. Vejam meus braços óbvios, minhas pernas óbvias, minhas veias, meu sangue óbvios! Nada a mais do que um olho preso à cara no espelho retrovisor. Nada além do que apenas catar piolho. Nenhum significado oculto, sem simbolismo nenhum. Só para experimentar estar neste corpo.
Agito minha cabeça convulsivamente para ver se faz pensar, a ver se remedio de racionalidade essa insaciável fome que tenho de coisa humana ainda viva, pulsante e quente entre os meus dentes.
Porque insisto em me entregar tanto, arriscar joelhos, crânio, sobrevivência econômica, bacia e sanidade para poder sorver da existência um único e mínimo instante? Não sou prático.
E vejo que, de tal modo me afasto dos caracteres comuns aos de minha raça, que começo a questionar minha própria humanidade. Será que, sendo ainda tão primitivo, ainda sôo um ser humano?
De quê matéria viva jogada na lata de lixo dos tempos eu ainda me alimento?
Que paradoxo, que fascinante enigma sou eu!
Decifra-me.
Ou devora-me.