Vaso


Vaso Vazio
A cheia
de um rio meu

EU
rio de mim
Rio demasiado de mim

Riso de até
esvaziar-me toda
derramada fora

Ventilada
por dentro

Vaso sem flor,
sem terra, sem rios
Enche em correnteza
Esgota-se de ar

Vaso 
Infinito

Vazio, vazio
Vazio



Oroboro

Subitamente vi. Vi meu rabo, de rabo de olho. Inalcançável. Estendendo-se pelo infinito animal do meu profundo ser primitivo. Vi minha longa calda deitada na escada evolutiva, sua ponta ultrapassando meus ancestrais primatas. Vi a mim mesmo como um prisma multicolorido. Atado ao passado pelas nádegas, num rudimentar rabo de pavão. E sobre o rabo sentei-me, constrangido. Espírito encarnado em quatro patas, é o que sou. De imensas asas contraídas. Vôo pequeno, baixo e tímido na enormidade áerea. Esculpi uma vida de cheia de sentidos com apenas cinco sentidos...E um rabo, que entrevejo pelo canto da retina. Outro dia, vi meu antepassado: um nabo, caído na calçada da feira. Estava exatamente na rabeira da metamorfose vegetal que culminou anos depois em cérebro, identidade e coluna vertebral. Culminou em mim: bípede, sublime e paradoxal. Fingi não ver que entre o nabo e o ar do espaço que havia entre mim e o nabo, havia meu rabo. Minha metade sapo, a se esgueirar na estrada. Incômodo e indiscreto rabo, sob o pino sol do Ser que ainda hei de conhecer. Ser que um dia hei de me tornar. Bem ao fim da calda larga, ali está a pairar por sobre os ventos que hão de me passar. Deixarei tudo para trás, pelo rabo e, por fim, nada mais de mim levarei. Verei então o rabo despregar-se de vez e quedar-se também pelo caminho. Serei nada menos que um grão de areia. Nada mesmo, nada. Nado de um peixe, em seu regresso ao mar abissal. À fonte primeva. Uma outra Eva inicial. Serei nada, nado, peixe, areia. Verei, então, de rabo de olho o meu grande rabo de sereia. Sentado na vasta calda de um cometa como um girino cósmico, a flutuar fulminante pelo espaço sideral. E serei absoluto, uterino. O grilo angelical.

O cisco

Fui no médico de olho
E descobriu-se que há
Um cisco no meu olho esquerdo

Entendi que por conta disso
Aprendi a enxergar
Só pelas tangentes de mim
E fui tropeçando a vista nos outros

Comecei vendo toda a vida embaçada
E a mim mesma em tudo, misturada
Até alcançar uma visão embargada
De diferente compreensão

O cisco causou cisão no meu andar
Síncopa no meu coração
Delírio de palavra
Coceira de ver o mundo na totalidade.

'Deve arrancá-lo do olho', receitou o médico
Mas fiquei a me perguntar:
Como fazer isso sem levar
com o cisco o meu olhar?

Esse Sr. Nascimento


Certas canções que ouço

Cabem tão dentro de mim

Que perguntar carece:

Quem foi que contou para o Milton?!

Para não criar tumores

O regulador da bomba quebrou.

Agora estou inundada de verbos desgraçados!

A garganta rasgada,
por um grito descomunal

Entorna no papel o escuro e espesso caldo da raiva.

Não, raiva, não...

É réiva!

Poesia Insólita

Passado o ácido inverno

À indigestão das horas - velha azia

Minha flora intestinal está novamente desabrochando

É a primavera gástrica que se anuncia.

Balanço

Meu mundo balançou

E eu quase caí de maduro no chão

Do meu coração

ABAPORU-ARAWETE

"De quê?" - me pergunto.
De quê se compõe essa minha estranha matéria humana? Com que termostato me regulo, me meço, me modulo em minha dança incerta por esses trajetos infinitos?
Que infalível bússola absurda é esse meu antiquíssimo coração!
Não sei porque ainda me surpreendo com a evidência de minha frágil condição, toda vez que os dedos de minha mão me contam quantos mortos já enterrei.
Por que, passados tantos séculos da História, ainda me rasga a alma ver o meu figurino rasgado?

E não poder dilacerar, esgarçar mais o tempo, para poder caber mais tempo dentro deste meu andamento. Porque sou lento demais.
Sob este céu pleno de aviões, satélites e espaçonaves, que cobre este planeta interconectado, já plenamente desbravado, qual a minha indignação ao me descobrir completamente só e solto; à mercê do balanceio das caixas de áudio, das microfonias, dos fenômenos acústicos que me trazem um som amputado. Então nem mesmo todas as revoluções, todos os tratados, as declarações e tecnologias, nada podem fazer por mim diante de um cabo ruim num teatro lotado.
Já não era tempo de ter criado calos? Nem mesmo todas as Eras, corridas nestes milênios de evolução, não me ensinaram a responder mecanicamente? A agir como um ser autômato? Quem, hoje em dia, se constrange com uma imagem de guerra no jornal diário? Quem ainda se importa se os ovários da cadela estão fora de lugar?
Constato, dessa forma, que também eu estou fora de lugar e que meu espaço é miliminar.
Há algo de pré-histórico em minha organicidade. Meus passos são tortos, desequilibrados, ainda careço de estudar a fundo minha coordenação motora. Minha comunicação é escassa, bruta; eu mal saí da pré-fala. Sou desengonçado demais para conseguir nadar em raias tão estreitas, necessito do mar aberto.
Não sou objetivo, sou explícito, sou óbvio. Nada a esconder, nada a revelar. Não há coxias, não há filtros, depuradores ou traduções. Sou isso mesmo, exatamente. Vejam meus braços óbvios, minhas pernas óbvias, minhas veias, meu sangue óbvios! Nada a mais do que um olho preso à cara no espelho retrovisor. Nada além do que apenas catar piolho. Nenhum significado oculto, sem simbolismo nenhum. Só para experimentar estar neste corpo.
Agito minha cabeça convulsivamente para ver se faz pensar, a ver se remedio de racionalidade essa insaciável fome que tenho de coisa humana ainda viva, pulsante e quente entre os meus dentes.
Porque insisto em me entregar tanto, arriscar joelhos, crânio, sobrevivência econômica, bacia e sanidade para poder sorver da existência um único e mínimo instante? Não sou prático.
E vejo que, de tal modo me afasto dos caracteres comuns aos de minha raça, que começo a questionar minha própria humanidade. Será que, sendo ainda tão primitivo, ainda sôo um ser humano?
De quê matéria viva jogada na lata de lixo dos tempos eu ainda me alimento?
Que paradoxo, que fascinante enigma sou eu!
Decifra-me.
Ou devora-me.