Oroboro

Subitamente vi. Vi meu rabo, de rabo de olho. Inalcançável. Estendendo-se pelo infinito animal do meu profundo ser primitivo. Vi minha longa calda deitada na escada evolutiva, sua ponta ultrapassando meus ancestrais primatas. Vi a mim mesmo como um prisma multicolorido. Atado ao passado pelas nádegas, num rudimentar rabo de pavão. E sobre o rabo sentei-me, constrangido. Espírito encarnado em quatro patas, é o que sou. De imensas asas contraídas. Vôo pequeno, baixo e tímido na enormidade áerea. Esculpi uma vida de cheia de sentidos com apenas cinco sentidos...E um rabo, que entrevejo pelo canto da retina. Outro dia, vi meu antepassado: um nabo, caído na calçada da feira. Estava exatamente na rabeira da metamorfose vegetal que culminou anos depois em cérebro, identidade e coluna vertebral. Culminou em mim: bípede, sublime e paradoxal. Fingi não ver que entre o nabo e o ar do espaço que havia entre mim e o nabo, havia meu rabo. Minha metade sapo, a se esgueirar na estrada. Incômodo e indiscreto rabo, sob o pino sol do Ser que ainda hei de conhecer. Ser que um dia hei de me tornar. Bem ao fim da calda larga, ali está a pairar por sobre os ventos que hão de me passar. Deixarei tudo para trás, pelo rabo e, por fim, nada mais de mim levarei. Verei então o rabo despregar-se de vez e quedar-se também pelo caminho. Serei nada menos que um grão de areia. Nada mesmo, nada. Nado de um peixe, em seu regresso ao mar abissal. À fonte primeva. Uma outra Eva inicial. Serei nada, nado, peixe, areia. Verei, então, de rabo de olho o meu grande rabo de sereia. Sentado na vasta calda de um cometa como um girino cósmico, a flutuar fulminante pelo espaço sideral. E serei absoluto, uterino. O grilo angelical.