Dervixe

O treinamento começa com o giro sobre o eixo. Giro sobre si. Como um olho que se fecha para se ver, o corpo gira-se para se remoldar no espaço. Ele se debate no ar enquanto roda, rolando a pele pela atmosfera a fim de alisar-se, arrerondar-se. E é um fenômeno que se dá em duas direções, de dentro para fora e de fora para dentro, afetando-se e moldando-se também o espaço pelo corpo. É uma luta dolorosa e suave de mútuos desafios, de mútuo desempenho. Gira-se sobre si até não se ter tempo de elaborar uma teoria de vida, pois tudo o que se faz é girar, girar, girar. A dor, a alegria, a tristeza, o sucesso, o fracasso, são máscaras que incessantemente passam pela vista enquanto esta gira, gira, gira. E tamanha velocidade vai se ganhando com o tempo que, aos poucos, já não se consegue ver nitidamente cada coisa. Vai se diluindo o mundo. Vão se misturando as sensações. Vão-se perdendo os contornos dos momentos. Algo quer identificar cada coisa, algo quer entender, quer se agarrar, se nutrir de cada situação – feliz ou triste – mas não há tempo. É brevíssimo o instante de cada movimento. E nem se pode falar em ‘fotografias’ de instantes, apenas em borrões de vida. Porque só o que se faz é girar e, assim, nada tem fim em si mesmo. Tudo se esparrama e se mistura a tal ponto do olho não poder dizer onde acaba uma coisa e onde começa outra. E por algum tempo, que varia para cada indivíduo, isso é vivido com grande aflição – embora mesmo esta seja também algo a que não se consegue fixar-se inteiramente. Uma retumbante incerteza, a ameaça da instabilidade, o desequilíbrio iminente, a ininterruptabilidade do movimento...O giro faz revirar as mais tenebrosas paixões que habitam na alma humana. Tudo pelos ares! Tudo rodando, gravitando em torno de Algo. E este Algo, preso ao centro pela força centrípeta do giro, respira e vai aprendendo a relaxar para melhor se acomodar a tão absurda situação. Pois, de outro modo, arrisca-se a pender para qualquer direção e sofrer incalculáveis danos. Qualquer decisão é milimétrica, qualquer gesto é somente o inevitável e o foco é desfeito a todo segundo para que a vista não se prenda a coisa alguma e, deste modo, não perturbe a harmonia do giro. Lentamente, muito lentamente, vai se desenvolvendo certo balanço, certa destreza de observação tranquila. Os músculos vão alcançando seu grau de estafa física e a mente hiperativada pelo treinamento começa a fatigar-se. A rebeldia se polariza, atinge um ápice de não-aceitação, deflagra todas as suas resistências; o orgulho assume o comando, apresenta-se na linha de frente, tenta tomar para si o controle; a preguiça derrama o abatimento sobre o corpo; a dor, o medo, até a alegria se levanta e quer se impor como eixo supremo no interior do ser. Mas o giro, simplesmente, não cessa. Tudo se esgota e é vencido pelo constante girar. E os dias passam. Os meses, os anos, os séculos. Por vidas se girou e ainda se continua girando. Nada consegue fazer parar o giro...
Até que, um dia, tudo PÁRA.
Simples assim.
PÁRA.
E se pode, finalmente, VER.

(diz-se,então, que agora é o Giro quem está se girando)