varanda

Amanhece.
Estou acordando.

Vivencio, todos os dias, um trêmulo momento em que os olhos vacilam e demoram-se no abrir-se de vez. A mente trabalha em seu lento ofício de despertar. Entranha-se no sono a realidade às finas fatias. Sons que vêm do além-sonho e com ele se confundem. Me estendo vagueante entre dois mundos que me arrastam para dentro e para fora. É durante essa flutuação, de estar assim sem paradeiro exato, que decifro na curva do instante um vozerio branco de maresia. Rumor longínquo de águas. E este acalanto vai embalando meu despertar. Vou acordando mais...E mais, e...

Eis que começa a se por em funcionamento a fria memória do hábito, desmanchando vertiginosamente a vaga noção de um vasto corpo de mar à beira de casa. Não sei muito bem em que dobra de mundo tudo se transforma, em que infinitésimo de segundo se dá essa passagem de um lugar para outro.

Só sei que tudo o que ouço agora nada mais tem a ver com aquela impressão marítima. É apenas a ligeira massa sonora dos carros que trafegam pelo Elevado, a alguns metros da minha janela. Estou completamente acordado e lá fora, como sempre, passam carros.


Assim começa o meu aqui dentro.
Num lugar onde apenas eu testemunho o correr dos meus dias.
Minha casa é um fundo cego e esquecido da cidade.
Um buraco comprido onde a cidade se enverga, se anula e cai.
Um entre tantos, inumeráveis, que aqui se comprimem.
Aqui sou um.

Antes, confesso, amedrontava-me a insistência desse silêncio gasto.
Esse silêncio. A cortina de negridão que recobre as paredes.
Porém não agora. Tudo isso já não incomoda mais.
As horas dos anos reduzem alguém ao ponto de se poder caber em lugares assim.
Vai-se diminuindo, diminuindo...Até quase perder a forma do corpo, quase desfazer-se completamente de si. É um tanto quanto assustador de início. Porém, quando finalmente se atinge ser tão mínimo, daí sobrevém uma espécie diferente de conforto. É um repouso secreto e soturno que só se talha no sozinho das noites. Nele se respira e se vai alargando. Fabrica-se, assim, um novo corpo habitável deste lugar.

Prezo, hoje, a leve escuridão dos meus velhos cômodos. Observo a cada dia o limite visível das paredes recuando um pouco mais. Vivo no recolhimento dos meus poucos móveis, meu telefone sobre uma mesinha baixa e redonda, um vaso com poucas flores descansando sobre a estante, a televisão, minha geladeira coisas assim.
E tenho uma varanda.
Não que haja coisas a se ver lá fora, mas ali estão minhas plantas. Duas samambaias penduradas uma em cada canto, rego-as uma vez por dia; e as violetinhas ficam próximas aos antúrios vermelhos. Gosto de tomar um café, à tarde, sentado na varanda.

Gosto de imaginar coisas vãs se passando em lugares desconhecidos enquanto estou sentado. Uma folha desprendendo-se de um galho bem alto da árvores, em algum lugar no Japão. A desesperada corrida de um antílope para salvar-se de um leão, nalgum canto da África. Alguém vestindo um casaco verde e pesado, atravessando a rua num dia frio e pálido da Rússia.

Tem vezes em que estou lendo um livro e, de repente, sem motivo especial, ergo os olhos em direção à janela, através da qual dou com a vista noutras janelas dos prédios em frente.
Que esperava ver?
Saio à varanda.

Não existe horizonte aqui, por isso olho sempre para o alto. Volto o rosto para o sol, para o céu.É um estreito caminho vertical, esse que se estende entre eu e o Universo. Fico ali quieto, quieto...
É uma meditação que faço, espontaneamente, sem consciência do que acabo fazendo. Fico ali. Só.

Eu só.
A sós, no vão da vida.


Nesses momentos, exposto assim em pele e carne à flor do dia, à sombra dos edifícios, tenho já para mim declarado que minha notória aparição na varanda configura o prestar de meu depoimento:

Apareço e existo.