A PORTA

Decodificar. Supõe-se que haja um código que abre uma passagem para algo além, algo que está temporariamente protegido. Ou seja, decodificar é revelar. Mas eu pergunto: como é possível decodificar o código para revelar o ‘código’ em si, e não outra coisa que está além dele? Poderíamos pensar que dizer de um “código secreto” seria uma redundância, já que só há sentido num código se ele for secreto. E isso está correto, mas pensar assim seria reduzir o espanto e a complexidade da questão a uma conclusão por demais simplista. Porque a constatação de que o código em si é indecodificável e permanecerá secreto para sempre é um grande choque para nós.
É como conceber uma pergunta que um dia volta-se para si mesma e pergunta:
- Quem sou eu?
(Pode uma pergunta ser um eco de si?)
(Poderá a pergunta, algum dia, responder-se?)
Neste caso ela deixaria de existir, desapareceria. Mas uma pergunta não deixa de ser pergunta apenas pelo fato de que existe uma resposta. A pergunta É e fim. O fim da linha, a sua incômoda incógnita. Nenhuma solução poderá assassiná-la. As respostas não duram muito tempo: evaporam. Só as perguntas são eternas. As soluções, sua matemática exata e acessível, não resolvem a questão existencial da pergunta; sua função consiste em matar uma rala fome de conhecimentos por parte do Homem prático, que rapidamente se dá por satisfeito com seus cálculos e muda logo de assunto, passando a cuidar de outras questões. O que, aliás, prova que sempre existirão questões. No fundo, é a permanência da pergunta jamais resolvida. Incólume e intacto à nossa distraída passagem, permanece suavemente o código trancafiado em seu íntimo e oculto significado. Ficamos vivendo a nos enganar acreditando que 'decodificamos’ as coisas e agarramos poeira com nossas mãos mentais. Enlouquecemos por conta disso. Corremos afoitos em busca do objeto sombrio e desconhecido que se aninha atrás da porta – com seu código secreto – em silencioso recolhimento. E, na verdade, a grande charada não é o que está atrás da porta.
O que é a Porta é o que, de fato, importa.
Mas a Porta é inofensiva, calma e simples demais para ser vista. Tão óbvia e absurda que não a vemos. Nossa saga é reunir coragem e bravura suficientes para aniquilar todos os obstáculos que nublam a plena e pura imagem da Porta. Pois é preciso morrer para renascer Porta. Não decodificamos a Porta, simplesmente passamos por ela sem nela nos deter. Porque o que nos interessa, doces prisioneiros de nós, é o que há além dela e que se esconde. Tão logo encontramos o objeto revelado, ele se desfaz nas mãos como fumaça de sentido e nos abandona novamente no abismo...da pergunta. Ainda resta a pergunta. E ainda resta a Porta. Diante de nossa fatigante miséria, a Porta dá boas gargalhadas. Ficamos atônitos e nus ao pé da Porta. Ela ordena que sejamos vazios. Que cortemos nossas mãos para pegar, furemos nossos olhos para ver. Que nos igualemos a ela, em sua natureza de ser quimera. Mas ainda nos enrubescemos, temos pudor, temos vergonha. Temos medo. Abrimos uma porta e ela nos leva para outra porta, e outra e outra e outra. Infinitamente. Não há começo nem fim para a essência da Porta. E conquanto seja onipresente, diluída e existente em toda parte, a Porta é, por essa mesma razão, inapreensível. Porque não há como sentir o lodo da vida sem se enlamear. Nem experimentar a alma do mundo sem com ela se diluir e desaparecer, gota perdida no oceano.
A Porta é uma vertigem de queda sem paredes.
A Porta congelada eternamente no instante do abrir-se.
Ela se abre, se abre, se abre, se abr...
Para sempre indecifrável.
E agora passamos novamente por ela, sorrindo como quem entende que não sabe. Entender que não se sabe é uma das coisas mais difíceis de fazer. E ela, muda – Porta – está quieta.
É preciso acreditar na Porta e no que há atrás dela, sem querer decodificá-la. Mesmo que depois tudo se desmanche e se perca. Então abre-se outra e segue-se a vida, porque não há mais nada a fazer além disso. Melhor seria extinguir a palavra “decodificar” da nossa existência e eliminar a terrível sensação de haver códigos que nunca poderão ser decifrados. Palavras como essa – Decodificar – talvez sejam meros frutos de uma imaginação doente e torpe; desses nomes que se criam em profusão para uma porção de nadas, em seu serviço de introduzir a total perda de sentidos no que, outrora, fora uma bela e sadia realidade. Essas perigosas palavras. Falsos deuses que nos acorrentam à sua existência, cobram préstimos e pequenos sacrifícios diários. Mas como matá-los sem morrermos junto?
Queremos uma resposta fácil, fora de nós, mas elas nos iludem.
A resposta que não se pode conter de se formular ao se fazer a pergunta.
A resposta vem como sentinela feroz a proteger e a disfarçar a pergunta.
Esse é o jogo.
Quantos não caíram, ao longo da batalha, acreditando que haviam visto? Quantos não supunham ter alcançado o supremo andar? Quantos não se iludiram e se perderam pelo caminho?
Pobres lebres, pegas pela tocaia bem armada.
E ei-nos aqui mais uma vez, de volta ao ponto-de-partida. Eis que atravesso a Porta sem desvendá-la. A Porta flutua em outra dimensão, inatingível, enquanto eu falo sobre o segredo que ela guarda. E o que ela guarda é justamente o que ela não é. Um peixe liso que escapa. É preciso nunca esquecer que não se sabe. Não se pode saber.
Bem aventurados aqueles que não desejam a Porta, pois somente a eles a Porta será.
Pois a porta só é porta para ela mesma.
É preciso ser ELA!!
É PRECISO!!!...
Já basta de ignorância! É tempo de se render à natureza de ser Porta!
De não temer ser essa pergunta que não se faz, que se auto-extermina e se responde sem existir. A Porta se cala para fora. O que não quer dizer que ela não exista: ela existe sim, é bem real e legítima. Mais real do que tudo. Ou simplesmente “real”, como a realidade que a gente sabe que existe e na qual acredita mesmo sem poder comprová-la.
Sempre nos bastou o mero indício de uma realidade em algum lugar para que a vida fosse possível, e assim seguimos. No entanto, estamos ávidos. Decodificar tem sido nossa perversa ilusão. Porém, já não queremos mais decodificar, estamos cansados das migalhas com que nos mantêm respirando. Estamos, finalmente, miseráveis. Pobres, sós, limpamos nossa existência com merda para sermos merecedores. Pois chegará o dia em que todas as portas que se abrem nos levarão, enfim, para a derradeira Porta. Lá, deitaremos nosso corpo exausto. A Porta será um lugar sereno e eterno. Fronteira última e intransponível de nossa caminhada. A Porta será um agora para sempre desabrochando. E isso não é a morte. O que será?